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sábado, 3 de dezembro de 2011

Ações envolvendo reféns


No caso paulista, inicia-se agora a discussão para ver de onde partiu a bala que matou o refém, porém, do ponto de um ponto de vista estratégico, isso não faz diferença. A autoridade policial está (ou deveria estar) no comando da situação e jamais usar de força letal se houver o risco (ou suspeita de risco) de atingir inocentes, a não ser em situações muito excepcionais, o que não aconteceu em nenhum dos dois casos.
Não quero criticar as ações policiais, mas parece que a polícia brasileira (de modo geral) não está suficientemente preparada para o uso controlado da força. Quando falamos em gerenciamento de emergência, temos que lembra que não estamos falando somente da resposta (resgate, incêndio, produtos perigosos e primeiros socorros), mas de crises de um modo mais amplo, de modo que esse assunto é de interesse por parte de gestores de emergência.
Justiça seja feita: nem todas as situações com reféns acabam mal. Quando estava terminando este post, vi duas notícias recentes sobre reféns liberados e suspeitos presos sem violência, em Pirassununga, SP e também em Belo Horizonte. As ações desastrosas repercutem mais na imprensa e permitem o estudo dos casos por parte dos não diretamente envolvidos.
Classicamente, uma situação com reféns envolve na fase inicial de resposta, o isolamento, a contenção, o controle e a comunicação, o que parece que não ocorreu. Em seguida, viriam as fases de distribuição estratégica, com o posicionamento de equipes táticas, estabelecimento de perímetros e posto de comando, de negociação e, finalmente, a fase de resolução com a rendição dos suspeitos ou, apenas em último caso, com ação tática para resgate de reféns.
Em junho de 2000, na zona sul do Rio de Janeiro, um ônibus foi sequestrado por um delinquente, num caso também com final trágico, dessa vez envolvendo a tropa de elite da polícia fluminense, o BOPE. Em um curso, fiz há algum tempo uma análise do caso, da perspectiva de um gestor de emergências, utilizando a abordagem clássica do assunto. A análise foi feita com base em notícias e entrevistas disponíveis na internet e não necessariamente representam a realidade, em especial nas questões consideradas sigilosas pelas autoridades, como o fluxo de informações na cadeia de comando, entre outras.
Na fase de resposta, embora o criminoso tenha sido contido no ônibus pela guarnição do 23º BPM que havia abordado o veículo inicialmente, não houve um isolamento efetivo pelas guarnições que chegaram em seguida, conforme indica a presença de curiosos e dos próprios jornalistas. Aparentemente, iniciou-se a comunicação com as primeiras equipes presentes.
Embora a fase inicial já tenha apresentado algumas falhas, foi na fase de distribuição estratégica que se iniciou a cadeia de erros que iria culminar com o desfecho desastroso do episódio.  Não houve estabelecimento de um posto de comando funcional, visto que o comandante da operação (IC), então comandante do BOPE, ficou em grande parte do tempo na linha de frente, confundindo-se com o negociador. A ausência de comando efetivo refletiu-se na falta dos perímetros e posicionamento das equipes táticas do BOPE de forma aparentemente autônoma. Houve também a ausência do posicionamento de “snipers”, que poderiam vigiar e fornecer informações importantes sobre a situação no ônibus, além de executar tiros de precisão, se necessário.
Já na fase de negociação, os erros continuaram. O negociador designado para o caso foi um capitão, também do BOPE.  Questiono o fato de o negociador fazer parte também da unidade de ação tática. Mesmo que no momento da negociação ele não tivesse o papel tático, vestia a farda negra com a hoje famosa insígnia da “faca na caveira”. Uma ressalva aqui seja feita, já que dada a imagem estereotipada de corrupção e incompetência das tropas regulares da PMRJ à época (que não necessariamente representava a verdade), o criminoso poderia sentir mais confiança negociando com um oficial do BOPE.
Toda a negociação foi feita em voz alta ou através de gestos, sem o uso de telefones celulares ou radiocomunicação e, pior, feita “cara a cara”, sem o uso de escudo balístico ou outra proteção, colocando em risco a segurança do negociador e também de toda a operação. Conforme exposto anteriormente, o IC colocou-se na linha de frente e assumiu a negociação em vários momentos, desautorizando o negociador e confundindo o marginal, que passou a negociar com duas pessoas diferentes.
Também não consta que familiares do criminoso ou dos reféns tenham sido contatados pelos policiais nessa fase.
A fase de resolução poderia ter acontecido antes, caso as fases anteriores houvessem acontecido corretamente. Às 15h50 (1h20 do início da situação), o marginal dispara contra os espectadores e às 17h40 encena a execução de uma refém, fatos suficientes para desencadear uma ação tática, preferencialmente um tiro de precisão. Porém, consta que o então Governador do Estado havia dado ordens expressas ao IC, através do celular, para que o criminoso fosse poupado, numa clara ingerência política sobre uma questão técnica e legal.
Apesar dos erros anteriores, às 18h45 o marginal sai do coletivo com uma refém e o evento mostrava-se a caminho de uma resolução sem mortes. Apesar de drogado e de ter tomado atitudes que poderiam (e deveriam) ter iniciado uma ação tática, o criminoso mostrou também sinais que tinha expectativa de sair vivo e – relativamente – bem do evento, como o fato de ter pedido emprego ao negociador. A meu ver, a rendição do marginal e resolução pacífica da situação era questão de tempo.
Nesse ponto houve a ação tática do BOPE, quando um soldado do batalhão aproximou-se do marginal e atirou um com uma submetralhadora HK MP-5, porém não conseguiu neutralizar o criminoso, que disparou e matou a refém. Embora o inquérito da Polícia Civil indique que o soldado agiu cumprindo ordens, a ação tem toda a aparência de uma atitude autônoma (“free lancer”), inadmissível em uma situação como essa. A arma e a abordagem também não foram adequadas, pois uma análise do vídeo da ação mostra que o bandido virou-se para o policial, possivelmente ao escutar o ruído do destravamento da submetralhadora, o que fez com que o atirador perdesse a oportunidade de neutralizar o marginal.
Como corolário para a desastrosa operação, o sequestrador, já desarmado e sob custódia da polícia, foi morto por asfixia dentro da viatura do BOPE que o conduzia. Os policiais envolvidos foram posteriormente inocentados. O livro “Elite da Tropa 2” traz um interessante relato do que teria acontecido na viatura, em uma das muitas ramificações da história.
Em um balanço final, embora “apenas” um refém tenha sido morto pelo criminoso e os demais salvos, mesmo essa morte e a morte de próprio marginal poderiam ter sido evitadas com um melhor gerenciamento da situação. Embora nos meses que se seguiram o caso tenha sido considerado um divisor de águas e um aprendizado para que situações semelhantes nunca mais acontecessem, a realidade mostrou-se diferente, como aconteceu no caso de Santo André, em outubro de 2008, e agora nos casos mais recentes.

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